Rebanhos além monte ela guardava,
Seu canto me vem no vento trazido
E uma ânsia pela sua mágoa
Enche o que em mim é indefinido.
II
Lagos de espírito murados de rochas
Dormem no vazio da sua toada,
A sua nudez ali se demora
A reflectir na sombra salpicada.
III
Mas o que há de real em tudo isto
É a minha alma, a tarde, o cais somente
E, como sombra dos meus sonhos disto,
A dor em mim de nova dor se sente.
IV
Mas o que é ela que traz o pesar?
E o que há nela que o pesar desvanece?
Que rasto de amor é este bem-estar
Que segue o seu trilho se desaparece?
V
Lírios há entre corações e mãos.
A vida é pequena ao pé do luar.
Mas movam-se um pouco as árvores que estão
E logo se espera que ela vá voltar...
FERNANDO PESSOA
(1888 - 1935)
« Tenho pensamentos
que se pudesse revelá-los
e fazê-los viver,
acrescentariam nova
luminosidade às estrelas,
nova beleza ao mundo e
maior amor ao coração
dos homens! »
Fernando Pessoa
ana/eu!
ana/eu!
ELAS (excerto)
Elas fizeram greves de braços caídos.
Elas brigaram em casa para ir ao Sindicato e à Junta.
Elas gritaram à vizinha que era fascista.
Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas.
Elas vieram para a rua de encarnado.
Elas foram pedir para ali uma estrada e canos de água.
Elas gritaram muito.
Elas encheram as ruas de cravos.
Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes.
Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua.
Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo.
Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas.
Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra.
Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho.
Elas tiveram medo e foram e não foram.
Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas.
Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa.
Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões.
Elas levantaram um braço nas grandes assembleias.
Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos.
Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta
a Lisboa dizer-lhes como é.
Elas vieram dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada.
Elas estenderam roupa a cantar com as armas que temos na mão.
Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens.
Elas iam e não sabiam para onde, mas iam.
Elas acendem o lume.
Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado.
São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.
Maria Velho da Costa
ana/eu!
Súplica
Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz,
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
II
Perde-se a vida a desejá-la tanto,
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada,
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.
Miguel Torga
ana/eu!
COMEÇO
Magoei os pés no chão onde nasci.
Cilícios de raivosa hostilidade
Abriram golpes na fragilidade
De criatura
Que não pude deixar de ser um dia
Com lágrimas, de pasmo e de amargura
Paguei à terra o pão que lhe pedia.
Comprei a consciência do que sou
Homem de trocas com a natureza.
Fera sentada à mesa
Depois de ter escoado o coração
Na incerteza
De comer o suor que semeou,
Varejou,
E, dobrada de lírica tristeza,
Carregou!
Miguel Torga
AURORA
A poesia não é voz -- é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas.
...
Voo sem pássaro dentro.
Adolfo Casais Monteiro
ana/eu!
Pelo que não fiz, perdão!
Pelo tempo que vi, parado,
correr chamando por mim,
pelos enganos que talvez
poupando me empobreceram,
pelas esperanças que não tive
e os sonhos que somente
sonhando julguei viver,
pelos olhares amortalhados
na cinza de sóis que apaguei
com riscos de quem já sabe,
por todos os desvarios
que nem cheguei a conceber,
pelos risos, pelas lágrimas,
pelos beijos e mais coisas,
que sem dó de mim malogrei,
- Por tudo, Vida, perdão!
ADOLFO CASAIS MONTEIRO